23 de janeiro de 2011

Química da amizade. Os cães enfermeiros

Companheiros do ser humano há 14.000 anos, cães são treinados para dar assistência a portadores de epilepsia. Alguns podem até livrar seus donos da maior angústia causada pela doença: saber quando uma crise vai acontecer.


Síndrome de Nicolais-Baraitser
“Lucia dorme comigo todos os dias. Ela é a minha melhor amiga e eu não quero nunca me separar dela”, Spencer Wyatt, 11 anos [foto: Arquivo pessoal]
Spencer conheceu Lucia quando ela tinha apenas um ano de vida. No terceiro encontro, ela começou a marchar disciplinadamente para frente e para trás, numa tentativa de dizer que algo estava errado. Mas Spencer só entendeu o recado dez minutos mais tarde e, sentado à mesa de jantar, não teve tempo de se deitar no chão para enfrentar mais uma das crises epilépticas que aparecem a cada duas semanas. Spencer Wyatt é um pré-adolescente americano de 11 anos. Lucia, uma golden retriever, tem 4 anos. Ela faz parte do seleto grupo de cães conhecidos como seizure-response dogs e seizure-alert dogs (cães de alerta e de resposta a convulsão), animais treinados por até dois anos para prestar assistência a seres humanos que enfrentam a mesma condição de Spencer. É um novo capítulo na longa história de troca entre cães e homens, que, segundo estudos científicos, começou a ser escrita há cerca de 14.000, quando o ser humano atraiu para perto de si esse descendente do lobo, domesticando-o.

Não bastasse o apoio que os "cães de alerta" dão a quem tem crises – eles podem buscar ajuda ou até deitar sobre o corpo do dono, evitando que ele se machuque durante convulsões –, cerca de 90% desses caninos desenvolvem a capacidade de prever a ocorrência de um ataque com até 15 minutos de antecedência. A ciência ainda tenta entender esse mecanismo (confira o infográfico abaixo). Parte dos estudiosos do assunto acredita que isso se deve ao apuradíssimo olfato dos cães, que dispõem de mais de 220 milhões de receptores olfativos, ante cinco milhões dos humanos. Isso permitiria ao animal farejar o odor de substâncias exaladas pelo homem, mas imperceptíveis a ele, na iminência de uma crise.

Outro grupo aposta na capacidade dos cães de se adaptar ao modo de vida de seu dono e perceber eventuais mudanças de comportamento. "Não temos recursos técnicos para medir o primeiro impulso de uma crise epiléptica, nem quando monitoramos a atividade cerebral dos pacientes. É improvável que um cachorro consiga fazê-lo", diz Adam Kirton, médico neurologista do Alberta Children's Hospital, dos Estados Unidos. Ele é um defensor da tese comportamental: ou seja, os cães seriam capazes de perceber quando seus donos apresentam sintomas que normalmente antecedem crises, como depressão ou euforia súbita.

Apesar de bem-sucedidas, parcerias como a de Spencer e Lucia ainda são raras. Em 2009, apenas 59 cães para epilépticos foram treinados em todo o mundo por instituições credenciadas pela Assistance Dogs Internacional – no Brasil, ainda não há experiências desse tipo. O baixo número reflete a pequena demanda, fruto, por sua vez, do desconhecimento do potencial desses animais e também das dúvidas científicas. Aqueles que adotam os seizure-response dogs, contudo, garantem que o animal pode ter valor inestimável, oferecendo aos portadores de epilepsia a chance de viver livre do maior mistério da doença: determinar quando uma crise vai acontecer.

Síndrome de Nicolais-Baraitser
“A primeira vez que acordei com Georgie ao meu lado, olhando por mim, senti uma forte sensação de segurança”, Channing Seideman, 17 anos [foto: arquivo pessoal]
É o caso da também americana Channing Seideman, de 17 anos, que há dois meses conta a companhia de Georgie, de um ano, uma labradoodle – cruzamento entre as raças golden retriever e poodle. "É bastante sorte ter a meu lado um cão que pode me alertar sobre as crises. Georgie já me avisou de três", diz Channing. A cadela tem ainda uma função literalmente vital: evitar o quadro de morte súbita, que pode acometer epilépticos. Todas as noites, Georgie fica de prontidão, ao pé da cama de Channing, num sono leve e alerta. Se a dona enfrenta uma crise no meio da madrugada, ela corre para o quarto vizinho e avisa a mãe de Channing que a filha não está bem. As crises noturnas costumam ter relação com quadros de apneia, que afetam a respiração. "Se você estimular a pessoa logo após uma crise, ela consegue voltar a respirar normalmente. Isso pode salvar a vida dela", diz Elza Márcia Yacubian, chefe do setor de epilepsia do Departamento de Neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Além do amparo, a companhia dos cães traz segurança. Amy Wyatt, mãe de Spencer, conta que Lucia foi a grande responsável pela inserção social do garoto, antes tímido e retraído. "As pessoas costumam se aproximar ao verem a cadela. Isso ajuda Spencer a se comunicar e até a falar sobre a doença", diz Amy. "Ela é minha melhor amiga", completa Spencer. "Quando eu for mais velho, sei que poderei sair sozinho, porque ela vai estar ao meu lado." Georgie também é companhia frequente de Channing, até no trajeto para o colégio. Para os pais, é a certeza de que a filha terá ajuda, caso precise. "Hoje, posso ir praticamente a qualquer lugar. Georgie diminuiu as restrições que a doença me impunha. Não consigo me imaginar sem ela", diz.


Os epilépticos não são os únicos beneficiados pela atenção dos cães. Uma outra leva de animais vem sendo treinada para ajudar portadores de diabetes, por exemplo. Os diabetic-dogs podem detectar pequenas mudanças no hálito de um paciente com diabetes do tipo 1, decorrentes da alteração do nível de glicose no sangue. "O cão pode dar o aviso de maneira discreta: tocando o dono com a pata, antes que este fique desorientado e não consiga se medicar ou comer algo a tempo", diz Alan Peters, diretor executivo da organização americana Can Do Canines, uma das pioneiras no treinamento dos animais. Em situações de emergência, os cães podem também apertar um botão de alerta, que normalmente avisa um amigo ou parente do paciente, ou até mesmo buscar uma garrafa de suco, telefone ou medicamento.

No Brasil, a prática ainda se resume ao treinamento de cães-guias, que auxiliam cegos e surdos. Nos Estados Unidos e no Canadá, além destes e dos seizure e diabetic-dogs, há a preparação dos animais que irão ajudar pessoas com mobilidade reduzida e autismo. O treinamento, para qualquer uma das modalidades, é caro. Por aqui, de acordo com o Instituto Cão Guia, do Rio de Janeiro, o custo para preparar um cão-guia gira em torno de 30.000 reais. A ética de doação de um animal desses segue os mesmos padrões da doação de órgãos: não se compra um cão treinado. Isso significa que a organização depende diretamente do trabalho de voluntários. Isso torna as filas de espera por um animal longas e demoradas. As doações ainda são limitadas e, muitas vezes, disponíveis apenas em grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro. Nos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Grã-Bretanha, países que ganham força no treinamento de seizure-dogs e diabetic-dogs, as organizações contam até com a ajuda de indústrias farmacêuticas, que bancam os custos. Se o treinamento de cães para a assistência à saúde de fato pegar, a milenar amizade entre homens e caninos só tende a se fortalecer.


fonte: VejaOnline
 

(infográfico: Veja.com)

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